Quase oito meses depois do incêndio que deixou 242 mortos em Santa Maria (RS), sobreviventes enfrentam dificuldades para conseguir cirurgias e medicamentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Queimaduras e problemas respiratórios acompanham jovens que passam por tratamento que não tem data para acabar. “Tem sido muito difícil, não foi minha culpa sobreviver. Acham que eu tenho de dar graças a Deus porque estou viva, mas não é assim”, disse a auxiliar administrativa Malu Dias dos Santos, de 25 anos.
Além da saúde fragilizada, a tragédia causou impacto financeiro nas famílias das vítimas, que pagam até R$ 500 por mês em medicamentos. Para eles, a atenção do governo ficou imperceptível assim que o caso perdeu força na imprensa. O problema motivou a Associação de Vítimas da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) a encaminhar um ofício ao Ministério da Saúde, na última segunda-feira (9), com os relatos de seis vítimas. Entre os depoimentos, o órgão cita o caso de Maiara Felipetto que não tem condições de comprar sua medicação e está há três meses sem tratamento.
A sensação de abandono veio três meses após a tragédia, segundo os sobreviventes. “O acesso aos exames e medicamentos pioraram e a fila [do SUS] cresceu. Ouvi falar que os remédios chegarão em um ano, mas preciso deles agora, estou doente agora. Não fico chateada pelo dinheiro, mas pelo abandono. [Governo estadual e federal] precisam se importar com os que ficaram”, desabafou Malu, que deixou Santa Maria para viver com a família em Santana do Livramento. “Ainda é difícil passar lá perto [da boate Kiss].”
Para a estudante, a aparência das suas mãos, braços e antebraços, que foram queimados no incêndio, não é o maior de seus problemas. Ainda com limitações pulmonares, entre crises de tosse e rouquidão, Malu contou ao iG que precisa de ao menos cinco remédios para o sistema respiratório, queimaduras e enxerto e para apoio psicológico. Além disso, tem de ser acompanhada por seis especialidades médicas. “As consultas consigo razoavelmente fácil pelo SUS, mas aí o médico pede um exame e entro numa de fila de espera de até dois meses. Eu já poderia estar melhor, mas esses atrasos só prolongam os meus problemas”. Nos últimos dois meses, Malu desenvolveu um síndrome pós-traumática e tem tido problemas de memória. “Acordei sem saber a data que meu filho nasceu”.
Já o professor do curso de medicina veterinária, Gustavo Cadore, de 32 anos, que teve 40% do seu corpo queimado na Kiss, ouviu em março que precisaria de uma cirurgia de urgência chamada artrodese de dedo, intervenção para fixar o dedo mínimo da mão esquerda que foi comprometido. Após receber o mesmo diagnóstico de oito médicos, ele estava disposto a pagar a intervenção de R$ 8 mil. No entanto, na última semana, conseguiu uma consulta para o dia 15 no Hospital Cristo Redentor, de Porto Alegre, especializado no tratamento de queimados.
Esperançoso, Cadore acredita que desta vez conseguirá a tão esperada correção que dará mais independência na área profissional. “Tenho medo que [o problema] acabe alcançando os outros dedos ou evolua para uma infecção óssea. Com a cirurgia posso me dedicar melhor ao trabalho e seguir a minha vida”. No momento, o professor toma dois remédios, um para o pulmão e outro de controle psicológico. “Mas estou bem”, garante. Ele ainda precisa hidratar as queimaduras quatro vezes por dia com uma pomada que custa em média R$ 160 e que não dura o mês inteiro. “Guardo todas as notas fiscais. Quem sabe um dia poderei recuperar todos esses gastos.”
Ter feito parte da tragédia da boate Kiss marcou a vida e mudou as ambições de Naiara Hennig Neuenfeldt, de 20 anos, estudante de tecnologia em alimentos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). “Inalei tanta fumaça que perdi as forças e caí. Na hora pensei: ‘Acabou, vou morrer aqui’. Até que senti o calor do fogo e comecei a pensar na minha família”, narrou a estudante o momento em que centenas de jovens tentavam deixar a boate após anúncio de fogo. “Depois de tudo que eu passei, olho tudo com outros olhos. Não tenho idade para perder tempo."
Naiara teve a traqueia e cordas vocais queimadas e um derrame pleoral, acúmulo de líquido no pulmão, o que demanda sessões diárias de fisioterapia no Centro Integrado de Atenção às Vítimas de Acidente (Ciava), montado no Hospital Universitário (Husm), onde a maioria das vítimas é tratada. Após receber alta do Hospital Caridade, onde passou 20 dias internada e uma semana em coma induzido, a estudante contou para a família que não estava contente com a faculdade. “Sempre quis medicina e depois do acidente tive coragem para largar tudo e tentar de novo”. A pedido da família a jovem continua na mesma turma, mas faz cursinho para o próximo vestibular.
Assim como outros sobreviventes, ela compra apenas parte de sua medicação (dois remédios para o pulmão e um spray nasal) porque conta com a ajuda de uma pneumologista do seu convênio. “Ela consegue parte dos meus remédios com o laboratório, mas não sabe até quando poderá ajudar”. Outro problema recorrente no HUSM, segundo a jovem, é a falta de medicamentos e aparelhos. “Até os funcionários reclamam”. Naiara citou ainda a falta de um exame que seria importante para as vítimas, o teste de difusão. “É um exame importante para checar a capacidade pulmonar de cada paciente. Não fazemos mais porque o aparelho estragou há sete meses.”
IG
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