O MC Daleste — assassinado sábado enquanto se apresentava no palco do conjunto habitacional da Vila San Martin (periferia de Campinas, SP) — era um dos artistas mais populares do Brasil. Faça uma pesquisa no YouTube (atualmente o termômetro mais fiel da popularidade musical): contei agora 16 vídeos com mais de 2 milhões de visualizações, entre 750 mil resultados. Há de tudo, até reportagem sobre sua chegada ao aeroporto do Recife, recebido por representantes de fã-clube pernambucano. Provavelmente se não fosse outro vídeo, que documenta o instante do crime, sua morte brutal não teria sido noticiada pelos jornais. Entraria apenas para alguma estatística sombria de homicídios de garotos negros e pobres nas cidades brasileiras.
Mesmo assim não houve mensagens de pêsames da presidência ou do MinC, como ocorre habitualmente em caso de mortes de artistas populares. Se a mesma coisa tivesse acontecido com músico “de boa família” durante show realizado em bairros “nobres” não tenho dúvida: seria comoção nacional, com avalanche de tributos nos cadernos culturais. Não culpo jornalistas: a maioria não tinha a menor ideia do sucesso do MC Daleste. O funk paulistano é parte do mundo “invisível” da música mais popular hoje no país. Seu sucesso continua independente das instâncias tradicionais de consagração e divulgação que ainda vigoram na imprensa.
Só ouvi falar do MC Daleste recentemente, de forma bem pouco usual. Durante a exibição do “Esquenta!”, seus fãs organizavam mutirões no Twitter transformando hashtags pedindo a presença de seu ídolo no programa em TTs. Renato Barreiros, que é pesquisador do “Esquenta!” e meu guia para as novidades do funk de São Paulo, foi quem me deu a notícia do assassinato: “Era hoje o maior ídolo da juventude de periferia de SP. Eu o conhecia bem, era um moleque bom, super alegre e que não tinha envolvimento com nada errado”.
Renato foi subprefeito da Cidade Tiradentes, Zona Leste de São Paulo. Na sua gestão começou a organizar festivais de funk na cidade, percebendo bem no início a importância que esse ritmo teria para a cultura paulistana. Foi momento de relação virtuosa entre poder público e música periférica, que não teve continuidade em governos posteriores. No Rio, o abandono/invisibilidade do funk foi o maior incentivo para a invenção do “proibidão”. Em São Paulo, onde a polícia passou a proibir bailes, há agora essa matança em série de MCs.
As letras de MC Daleste utilizavam procedimento comum em canções da Legião Urbana. Quando meu grande amigo Renato Russo cantava “eu moro com a minha mãe, mas meu pai vem me visitar”, não falava sobre sua família. Os versos “a violência é tão fascinante, e nossas vidas são tão normais”, de “Baader-Meinhof blues”, não devem ser interpretados como apologia ao terrorismo. Também eram muito variados os “eus“ dos funks de Daleste. Em “Angra dos Reis” quem fala é adolescente em busca de “ostentação”. Em “Mãe de traficante” ouvimos: “oh meu filho, não faça mais isso pelo amor de Deus/ não me faça passar por onde eu não preciso/ siga meu exemplo, sou trabalhadora/ mas infelizmente não fiz faculdade/ foi dias e noites lutando e lutando/ mas tudo o que eu tenho foi com dignidade”. Sempre retratos de gente que o compositor via ao seu redor. Não concordava necessariamente com o que estava cantando.
Daleste só foi explicitamente autobiográfico em versão improvisada de funk disponível no YouTube. O resultado é um dos depoimentos mais contundentes sobre a realidade brasileira contemporânea. Enorme vontade de viver. Transcrevo a letra, para que mais gente possa “passar adiante” sua história, nossa tragédia: “quando comecei/ passava a maior dificuldade/ e lá em casa era fora de realidade/ é revoltante eu sei/ senti o gosto do veneno/ até os 13 anos de idade não tinha banheiro/ e lá em casa as paredes eram de madeira/ lembro como se fosse agora/ quando abria a geladeira, não tinha nada para comer/ a barriga vazia/ mas amanhã eu vou pra escola/ como na merenda/ sábado e domingo é difícil/ mas a gente aguenta/ mas a fome não é nada/ em relação ao principal/ nunca entendi porque não tive a família normal/ minha mãe e meu pai trabalhando/ e meu irmão na escola /minha irmã mais velha na faculdade /mas a vida é foda /tudo ao contrário meu destino aconteceu /mas entreguei tudo isso na mão de Deus /e hoje estou aqui, passando adiante /cantando minha história pra quem gosta de funk /muito obrigado pela atenção de todos vocês /o resto dessa história venho cantar outra vez /eu sou vencedor na porra do bagulho /sou funkeiro sim e disso me orgulho /levo no peito as cicatrizes do preconceito”.
G1
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