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Victor Mateus

quinta-feira, 27 de outubro de 2011


Quando a política vira coisa “técnica




Desconfie daqueles que tentam lhe convencer da existência de medidas puramente técnicas em administrações públicas. Geralmente buscam encobrir o essencial: a ação governamental tem sempre ganhadores e perdedores. É sempre política.
A virtual quebra da economia grega representa o grau máximo de submissão de uma autoridade pública aos ditames do mercado. Ou seja, ao mundo privado. Embora as relações de troca se deem na esfera pública, suas regras, dinâmicas e procedimentos acontecem a partir daquela pequena mas poderosa parcela da sociedade que concentra capital e, por conseguinte, poder.
O governo grego, capitaneado por um partido que tem a denominação de “socialista” – o que hoje não significa muita coisa – resolveu tomar lado no dilema colocado à sua frente. Se suspendesse os pagamentos do serviço de sua dívida pública, estaria ameaçado de sofrer uma retaliação brutal por parte dos bancos credores – em sua maior parte europeus – e de ser tratado como um pária no sistema financeiro internacional. Uma espécie de leproso da Idade Média, de quem nada ou ninguém quer se aproximar e muito menos oferecer linhas de crédito.
Uma escolha soberana desse tipo teria também efeitos devastadores para a economia européia. Uma moratória ou default por parte do país, além de arrastar bancos franceses e alemães, contaminaria toda a zona do euro (na dupla acepção do termo) e poderia dizimar a credibilidade da moeda única, dizimando economias maiores que enfrentam problemas fiscais de difícil solução.
O governo grego tomou a não decisão: aceitar todas as exigências das autoridades monetárias européias e dos bancos credores. Arrebentarão o país, mas serão reconhecidos como bons pagadores.
O bom senso da rendição
Entre as duas opções, a administração de George Papandreou escolheu a alternativa tida como a mais sensata. Na novilíngua global, bom senso quer dizer render-se às circunstâncias ou caminhar passivamente para o matadouro (apesar das multidões não quererem isso).
Alguns governos europeus, de esquerda e de direita, trafegam pela mesma senda diante do tsunami da crise. A administração de José Luis Zapatero, na Espanha, chegou ao cúmulo de pretender colocar uma apertadíssima meta de déficit público na letra da Constituição, para se adequar às orientações do sistema financeiro.
Um ponto tem unido governos de distintas colorações: arrocho fiscal, redução do papel social do Estado e absoluta prioridade ao atendimento das demandas do mercado. Cada vez mais se buscam “consensos” que tornam as ações econômicas de distintos partidos no poder quase indiferenciadas entre si.
Neutras e limpas
A justificativa para o grande público é que as medidas adotadas seriam “técnicas” e nada teriam a ver com a esfera política. Algo semelhante ao que é decidido nas reuniões do Copom, do Banco Central brasileiro. Elevações estratosféricas das taxas de juros seriam decisões tomadas por um pessoal especializado que não se deixa dominar pelas paixões da política. Paixão, todos sabem, é aquela força estranha, algo irracional, que nos deixa em estado catatônico e nos faz pensar o dia inteiro na pessoa amada.
Opções técnicas seriam feitas em ambientes neutros, limpos, de pura racionalidade, quase esterilizados, repletos de indicadores, estatísticas, balancetes e várias engenhocas de última geração. A decisão seria tão isenta quanto trocar o pneu furado de uma bicicleta.
O reino da política, por sua vez, seria sujo, cheio de interesses inconfessáveis, corrupto, parcial e tocado por gente da pior espécie. Se fosse num filme, poderia ser retratado como um local esfumaçado, repleto de vícios, drogas, álcool e negociatas variadas. Pior ainda se fosse contaminado pelo vírus da ideologia, essa praga que só serve para confundir as coisas e evitar que se faça o que tem de ser feito. Aliás, este era o slogan da campanha de Mario Covas (PSDB-SP) à reeleição para governador, em 1998: “Fazendo o que tem que ser feito”.
A diretriz tecnicista é tão óbvia e de fácil entendimento, que costuma se tornar popular. Por isso, o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, gerou enorme empatia ao dizer que seu novo partido, o PSD. Ele “não é de direita, nem de esquerda e nem de centro”. É uma agremiação que fará o que tem de ser feito, um partido sem esse vício pernicioso da política. Um partido técnico, enfim.
É a política, é a política!
Poucos se aventuram atualmente a investir contra esse cipoal de meias verdades tecnicizantes.
Um deles é o ex-presidente Lula. Ele disse, durante a solenidade em que recebeu o título de doutor honoris causa do Instituto de Estudos Políticos de Paris, no último dia 27, que a crise econômica se resolve essencialmente no terreno da política. “A hora não é de negar a política, e sim fortalecê-la”, completou ele.
A frase toca num dos pontos mais caros aos conservadores e às lideranças políticas que buscam justificar medidas impopulares. Para eles, cortes orçamentários, restrições salariais, taxas de juros estratosféricas, entre outras iniciativas, seriam medidas “técnicas”, não “contaminadas” pelas “paixões políticas ou ideológicas”. Age-se como se existisse uma economia desprovida de ganhadores e perdedores, algo distante do arbítrio das decisões humanas.
História antiga
A distinção entre a política e medidas tidas como técnicas não nasceu com os ultraliberais de hoje. Como dizia o ex-governador Leonel Brizola, essa formulação vem de longe.
Uma das principais referências teóricas do pensamento conservador em economia é o Tratado de Economia Política, escrito pelo francês Jean-Baptiste Say (1767-1832),. Escrito em 1803, o trabalho é tido como um dos pilares do liberalismo. Say é um seguidor de Adam Smith (1723-90).
Say coloca no papel teses que se tornaram caras aos liberais ao longo dos séculos, como, por exemplo, a completa separação entre economia e política:
“Durante muito tempo, confundiu-se a Política propriamente dita, a ciência da organização das sociedades, com a Economia Política, que ensina como se constituem, se distribuem e se consomem as riquezas que satisfazem as necessidades das sociedades. Entretanto, as riquezas são essencialmente independentes da organização política. Desde que bem administrado, um Estado pode prosperar sob qualquer forma de governo”.
Em certa medida, é o que o economista liberal brasileiro Eugenio Gudin (1886-1986) defende em 1938, em um texto chamado Aspecto econômico do corporativismo brasileiro. Ali ele comenta a história do capitalismo nos séculos XIX e XX:
“Quem acompanhou a marcha e a evolução do chamado regime capitalista de 1875 a 1914, até rompimento da Guerra Mundial, constatou que o enriquecimento geral prosseguia seu ritmo natural e benéfico, a difusão de capitais se processava com regularidade, as condições de trabalho melhoravam por toda parte, o comércio internacional melhorava todos os anos. E se guerra houve, foi inteiramente gerada pelas paixões e ambições políticas e militares e em que os fatores econômicos menor papel representaram, essa foi a guerra de 1914, que desencadeou sobre o mundo uma das maiores crises econômicas da história”.
Gudin também separava economia de política. O conservadorismo vê a sociedade formada por partes estanques entre si.
Desconfie dos técnicos. O Brasil de 1964 estava cheio deles. Eram todos apolíticos, mas não vacilaram em aderir ao golpe triunfante e compor a tecnoburocracia da ditadura. Hoje encastelam-se no sistema financeiro, têm colunas na imprensa e continuam defendendo privatizações, desregulamentações, superávits primários, arrochos variados e recomendando fazer o que tem de ser feito.
Todos são sensatos, isentos e recionais. Longe da sujeira da política.

Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).

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